Minestra Reflexiva
- nicole khouri
- 9 de ago. de 2024
- 3 min de leitura
minha vó, memória e cozinha
Ano passado, em visita a casa dos meus pais, me peguei num daqueles dias em que é preciso abrir um docs e colocar os pensamentos pra fora em texto, palavra por palavra até desfazer o bolo de ideias (não comestÃvel) que me consome - acontece com certa frequência.Â
Lembro que nesse dia me assombrava muito a ideia de 'demência sênil', que há pelo menos 8 anos virou diagnóstico pra vó Cida, mãe da minha mãe e a única viva dos meus avós.
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Eu começava aquele texto expressando que alÃvio seria descobrir se ao fim da vida, do corpo, a mente se regenerasse, como na ideia de uma alma que reencarna. Me pegava pensando pra onde ia a mente de alguém que não tem mais lucidez, ou tem tão pouca lucidez. Pra onde vai tudo que ela sabe? Pra onde vai sua habilidade de não errar o ponto do macarrão ou de saber quanto tempo o feijão precisa pra cozinhar sem a gente ficar olhando pra ele?
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O texto não terminou com qualquer conclusão - ele não terminou, na verdade. Coloquei pra fora como quem regurgita um feijão que deu azia e absorvi parte dessas reflexões, que surgem vez ou outra, como quem come um pimentão verde e dele se lembra por 1 ou 2 dias.
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Fato é que eu penso nisso como penso na morte das nossas culturas (e me apavoro) - a morte do boteco, por exemplo, que foi discussão de bêbado aqui em casa com o Gabriel: Eu defendia que o boteco e a figura de como ele nasceu, das vendas e armazéns, do pouco que ainda temos hoje, que isso se perderia. Ele, como quem não quer me dar duras palavras, só esboçava algo do tipo: 'é o ciclo das coisas!' Essa coisa de ser nostálgico e amar passado é um perigo pra nós mortais, né?Se esse texto parece não fazer sentido algum, eu já te dou! Minha reflexão do dia, fazendo a minestra da minha vó, foi um pouco mais fundo na panela. Quase que num raro ato otimista da minha parte, entendi que a repetição e sequência desses hábitos - que não sei tanto porque quero tornar imortais - podem sim perdurar enquanto estivermos aqui lembrando, produzindo, compartilhando, recriando e servindo.
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Acho que é também por isso que tanto quero fazer comida pros outros e contar alguma história através dela - não quero que elas morram - ou pelo menos quero a consciência (ainda lúcida) de que fiz minha parte pra que durassem mais (ego ou emoção?)
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Minha vó Cida é filha de italianos, que como muitos, vieram fugidos com suas histórias, tristezas, fracassos e conquistas na bagagem dos navios. A cota dessa história da qual ela faz parte é a do sertanejo que alongava feijão com água pra fazer render e que, entre tantas contribuições pro que conhecemos hoje como culinária caipira da paulistânia, (pela qual muitas vezes só os mineiros são reconhecidos, rs) nos deixou o gosto pelo simples (e veja, não um gosto simples).
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A minestra de hoje me levou de volta pra mesa de madeira na cozinha da casa dos meus avós, com meu vô ainda ativo, seu prato-montanha de arroz, feijão, farofa e pimenta dedo de moça (ele tinha um garfo só pra pegar pimenta e, por descuido, um dia coloquei na boca, entendendo porque havia um talher exclusivo pra isso na casa).
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Lembrei de quando a vó Cida podia acender a chama do fogão, sem matar de medo seus filhos e netos, pra fazer seus refogadinhos, mexidinhos, sua polenta com frango e molho vermelho ou um macarrão com salsicha pra jantarmos às 17h.
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Lembrar também é, de certa forma, não deixar morrer! Na minha cozinha sempre tem lembrança, às vezes (muitas vezes) de algo que eu nem vivi, só ouvi, ou só imaginei e imagino, e quero que continue assim. Será que alguém vai lembrar de mim enquanto cozinha daqui uns 40 anos?
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Do que você lembra enquanto cozinha?




