A Tara do que Como!
- nicole khouri
- 9 de ago. de 2024
- 5 min de leitura
"se você deixou de ser vegano, talvez nunca tenha sido"
Ouvi frases como essa repetidamente quando anunciei que o veganismo não fazia mais parte de mim. Mas isso era algo que já comia minha mente há meses, ou talvez há anos - e, calma! - esse não é um texto sobre veganismo, mas tudo que vivo hoje é permeado pelos dez anos que fiquei sem comer carne.
Lembro que em 2013, quando decidi me testar ficando uma semana sem carne (óbvio que depois de me obrigar a assistir todos os documentários protocolo do vegetariano), quando contei a um amigo sobre minha decisão ele logo me disse: "Meu tio foi vegetariano por 10 anos e depois voltou a comer carne" - eu pensei: "Esse frouxo cedeu, eu não vou!"
A culpa sempre me acompanhou. Antes de tomar a decisão de ser vegetariana eu não sabia o que era encontrar prazer em um almoço ou janta desacompanhados de "mistura". Ao mesmo tempo não entendia porque eu continuava comendo carne se amava tanto os animais, se chorava vendo um boi no pasto ou alimentando os cachorros da rua com minha mochilinha de ração nas costas.
Vim de uma criação em que carne significa fartura e barriga cheia. Por parte de pai, a mesa árabe onde mesmo com os vegetais presentes e abundantes era a carne quem protagonizava o centro da mesa, majoritariamente vermelha.
Por parte de mãe, um frango no molho vermelho pra acompanhar a polenta, um macarrão com salsicha ou carne moÃda ,os mexidões e muito ovo, um bife muito bem batido, comidas pra render e dar sustância. E veja, sempre com vegetais, sempre comendo de tudo, mas sempre comendo carne.
Abolir animais do meu prato foi um desafio pra alguém que poderia viver de arroz, feijão e carne de panela com batata. Eu tive que aprender uma nova cozinha, a minha cozinha.Os primeiros pratos vegetais foram absurdamente desconexos - era um misto de estar muito feliz por tentar e me arriscar, conhecer novos sabores e texturas e me frustrar com refeições que não me deixavam de barriga cheia. O tesão não estava no sabor ou na boca salivando, estava na sensação de "fazer a minha parte" e largar pra trás um pouco da culpa que me consumia.
Optar pelos vegetais no centro da minha cozinha me ensinou boa parte do que sei hoje. Técnicas, preparos, temperos, tempo e novas culturas que nunca pensei conhecer, tudo conheci através da comida e era o veganismo que me forçava a isso. Todos esses anos me serviram pra hoje conseguir ver prazer em um prato "sem mistura" e, sem dúvidas, me ajudou a cuidar da compulsão, em querer estar sempre com a barriga cheia demais.
Carreguei por muito tempo uma bandeira pesada de sustentar e me vi correndo dela como o diabo foge da cruz. Eu queria gritar pra todo mundo e ao mesmo tempo não queria gritar mais nada pra ninguém!Toda essa jornada como vegana e tudo que passei (e passamos) nos últimos 4 anos foi muito importante pra que eu me respeitasse mais e respeitasse o desejo do outro. Porque veja, eu não sabia não colocar as pessoas em caixas e me frustrava ao descobrir que elas minimamente não cumpriam com minhas expectativas.
Aplicando minha lógica mesquinha a outros contextos entendo o quanto isso se conectava à s minhas experiências pessoais, de trabalho e no cenário de caos polÃtico que vivemos.
Eu não estou dizendo que devemos ser pacÃficos e acredito genuinamente que só a revolta e o desconforto movem a roda. Mas enxergar as pessoas como boas ou más não só nos limita como nos mata um pouquinho mais a cada dia como seres sociais.
Não me arrependo das relações que cortei ou das pessoas que magoei na época em que só de ouvir o nome do ex presidente eu já chorava de ódio, mas agradeço por ter sido comedida e ouvir o que as pessoas que pensam diferente de mim tem a dizer, tentar entender o porque elas acreditam no que acreditam.
Eu sei que não cabe ao outro ser como eu, e é justamente isso que tenho tentado praticar. Quando as pessoas me dizem que vão deixar de me seguir, ou de me apoiar, por eu não ser mais vegana (2 anos já, vamos viver) - mesmo meu conteúdo pouco tendo mudado, mesmo na continuidade do esforço constante em tornar vegetais protagonistas de nossas mesas, mesmo que essas pessoas continuem seguindo ou apoiando outras pessoas que nunca foram veganas - o que eu entendo é que elas não querem apoiar ou se conectar com alguém que já teve acesso à culpa e ao pertencimento da verdade absoluta e resolveu abrir mão.
Não pense que não me culpo, não pense que consigo olhar pra um caminhão de carga viva sem imaginar todo o sistema cruel de produção, não pense que eu não penso mais. Eu entendo que pra muita gente o apoio e a identificação só vem quando partilhamos das exatas mesmas batalhas (mas eu não posso mais acreditar nisso, em batalhas iguais, não tem como ignorar a batalha individual de cada um).
É como se eu não quisesse mais fazer algo somente pela ausência de culpa mas também pelo meu prazer de aproveitar as experiências das quais me isentei por tanto tempo. Eu não acredito mais em só fazer a minha parte, isso não faz mais sentido pra mim (pelo menos não agora).
Vi uma amiga do instagram compartilhar sua luta diária pra continuar fazendo sua parte mesmo sabendo que o mundo não vai mudar, vi muita gente partilhar do mesmo sentimento com ela nos comentários e isso me trouxe a sensação mista de esperança e tristeza.
Será que eu não deveria estar fazendo minha parte? Passados uns dias eu acho que entendi que hoje a minha parte é outra - e sigo tentando ficar bem com isso, a cada dia!
Hoje vejo que minha decisão se alimentou por muito tempo do esvaziamento de culpa, que hoje entendo ser inerente às nossas experiências mortais - não há como se livrar da culpa, ou da hipocrisia que nos permeia.E a cada vez que me percebo intimidada por alguém que me pergunta se eu como carne, vejo que o que me assombra é a ideia de resumir toda a minha existência em experiências bivalentes que anulam todo o contexto que me trouxe até aqui!
Já compartilhei de inúmeras formas: "Não sou mais vegana", "não sou vegetariana", "não sou flexitariana", não sou nada, só estou sendo alguma coisa enquanto posso. Acho que isso já explica muita coisa, não? Bom, parece que não, já que todo dia alguém me pergunta o que sou, o que como: Você come carne? Pra mim, isso já extrapola a curiosidade ou identificação, é quase que um fetiche em querer tirar as palavras da minha boca à força: "Confessa que você não se satisfaz só com quiabo e jiló". Que pira!
Hoje eu não quero convencer ninguém a nada, acho que entendi que meu trabalho nas redes é possibilitar conexão através da comida, contar história e falar de gente, inspirar alguma reflexão - individual ou não. Talvez essa seja a minha parte e a minha tara no momento!
E como eu também tenho os meus fetiches, aproveito para falar (ou escrever) o que por culpa não tenho dito: Como carne, com toda a ambivalência que isso me significa.
Fechando com a frase que iniciou o texto e alguns diálogos de ódio: "se você deixou de ser vegano, talvez nunca tenha sido". Pra mim, isso é abstração: Fui enquanto fui, acreditei enquanto acreditei, aprendi, ensinei, construà coisas lindas e outras nem tanto nesse tempo, sou outra pessoa, então pra mim pouco importa ser validada como farsa por quem ainda acredita que o mundo é preto no branco.
Faz sentido?
Um beijo da Comida.




